Maria Padilha é uma das mulheres mais inteligentes, divertidas e ferinas que conheço. Cheguei ao seu apartamento novo de frente para a Lagoa achando que ia encontrar uma metralhadora giratória, mas para a minha surpresa, dei com uma pessoa mansa e séria – dentro do que o seu senso de humor permite. Maria Padilha está na dela, e não sabe porque está sendo entrevistada, já que anda se sentindo unplugged de tudo. Mas para dar uma palhinha do seu poder de fogo, atira contra a nova vizinha do seu terraço, a árvore de Natal flutuante, que toca musica, solta fogos e tem um canhões que lançam luzes pra todos os lados. Segundo ela, essa árvore é um plano secreto da Al Qaeda e vai matá-la um dia.
Com quantos anos você começou no teatro e por quê?
Comecei no jardim da minha avó. Eu arrastava meus primos, arrumava gelo seco no depósito da Kibon para fazer fumaça no caldeirão e obrigava a família a assistir. Na Escola Americana, fiz “Pedro e o Lobo” e “A Bela Adormecida”. Com 14 anos entrei no Tablado para fazer expressão corporal. Nessa época eu andava com surfistas e obrigava eles a ver os espetáculos. Era uma coisa anos 1970, a gente jogava tinta uns nos outros e se arrastava no chão. Eu sabia que era um mico, mas não estava nem aí. Em outubro de 1979 estreei com o Despertar da Primavera e tranquei a matrícula na ESDI [Escola Superior de Desenho Industrial].
Foi difícil decidir largar a faculdade?
A gente saca quando não vai ser bom numa coisa e dá aflição saber que vai ser sempre a pior da turma. Quando entrei no Tablado para fazer aula com a Louise Cardoso, ela sempre dizia que eu era muito boa. Venho de uma família que não tem artistas e precisava saber que não estava louca, que eu queria fazer teatro, mas que o teatro também me queria.
Há tempos eu ouço você dizer que o mundo está muito careta. O que você acha que está assim?
Eu acho que o grande desafio da vida é conviver. E as pessoas estão com pânico do outro. O grande desafio da nossa vida é o outro, o convívio com a diferença sexual, social, em todos os sentidos, e, de um tempo para cá, ela está mais restrita. Até em termos de teatro, as pessoas estão procurando fazer peças com cada vez menos atores, não só por uma situação econômica, mas pra não ter que conviver. Cada pessoa é um universo, e cada universo é um problema, mas são problemas que, quando juntos, podem gerar coisas incríveis.
Você tem parceiros pesos-pesados da vida toda. Como é a sua relação com o o Ney Latorraca e Miguel Falabella?
Conheci o Ney fazendo “Das Tripas Coração”, ele fazia um padre e eu uma menina de colégio. Um dia cheguei no set e ele tava com o meu figurino, de chuquinha, dizendo: “Quero filmar assim”. A Ana Carolina [diretora do filme], que é maravilhosamente insana, trocou todos os figurinos numa cena. Então, o Ney e o [Antonio] Fagundes estão de menininha de colégio, a Mirian Muniz de padre, enquanto a Xuxa Lopes e a Dina Sfat andam nuas. O Ney é o guru dos gurus, ninguém supera o Ney, em nada. Ele me surpreende desde então. O Miguel eu conheci numa festa e a primeira coisa que ele me disse foi: “Nossa, você é a Maria Padilha do Tablado? Eu achei que você era uma negona da Bahia. Você é muito loura! Finalmente vou poder filmar Aconteceu em Estocolmo”. Em dez minutos a gente já tinha saído da festa pra comer brigadeiro e eu não parei de rir com ele até hoje.
Já teve momentos num trabalho em que você pensou: meu Deus, o que eu tô fazendo aqui?
Muitas vezes. Em trabalhos que estou adorando, passo por uns três momentos de: “Por que me meti nisso?” Já aprendi a não expor, porque levo todo mundo à loucura. Em processos que foram altamente bem sucedidos, que adorei fazer, eu me peguei falando: “Pra que eu faço teatro? Cinema demora muito! Televisão tem que decorar essa tralha!” Sou muito persistente, mas estou sempre me questionando.
Da trabalho ser assim?
Dá, mas a gente fica mais vivo, também. O Marçal Aquino diz que eu sou rebelde. Mas isso é uma coisa de paulista vendo uma carioca. Quando eu tava fazendo “Os Matadores”, quase todo mundo era paulista, e eu era um evento. Na festinha do último dia de filmagem, o Beto Brant falou: “Vou botar uma música para a Maria”. Sabe qual era? “Rio 40 graus”. Pra eles, no fundo, eu não passava de uma carioca. O carioca tem essa coisa no Brasil inteiro: a gente pode se esforçar, dar tudo o que tem, que no fundo eles vão sempre ver a gente assim: é carioca.
Como se faz um sucesso e um fracasso?
Não sei essa receita. Às vezes, você escolhe um diretor que acha maravilhoso, atores que ama, e não rola. Outras, junta pessoas que nem foram tão da sua escolha e calha de dar uma liga.
Você acredita em química?
Isso não existe. Química é você querer que a coisa dê certo com aquela pessoa. É querer saber da pessoa, querer entrar no universo, fazer um esforço para a coisa dar certo. O negócio é querer. A questão é que, às vezes, num projeto, os quereres estão diferentes. Mas quando está todo mundo muito a fim, o projeto é um sucesso. Tenho antipatia por essa coisa de química. Isso a gente cria, “o nosso amor a gente inventa”.
O que você está achando do teatro no Rio e no Brasil?
No Brasil está bem, no Rio está esquisito. No Brasil tem um problema econômico sério: o meio ingresso, que faz com que as pessoas acabem cobrando muito caro, e os pobres dos honestos, que não têm a sua carteira do curso de corte e costura, tenham que pagar R$ 70,00 pra ver um espetáculo. Então, o teatro é caro para quem paga e barato para quem tem que sustentar uma peça. Aqui no Rio tem uns grupos muito bacanas, a Companhia dos Atores, o pessoal do Jefferson Miranda, o Ivan Sugahara, tem uma geração novíssima que fez o “Valentin” no Tablado - uma turma com uma ambição artística incrível. Mas pelo que a gente está vendo agora, acho que a solução para o teatro do Rio é a periferia. O público que vai a teatro em shopping não quer ver uma peça de três horas. Eles medem o custo-benefício pelas gargalhadas. O Centro é bem mais interessante e as Lonas Culturais são a solução para o teatro no Rio. O carioca deixou de ser charmoso. Ele tinha o charme da informalidade, da espontaneidade, que foi tão esticado que virou uma certa canalhice. O espírito carioca dançou. É claro que tem uma coisa incrível aqui e ali, mas o Rio de Janeiro passa por uma crise de identidade. Mas isso muda. Acho que essa geração nova vai puxar a nossa ambição, é tanta gente fazendo trabalhos na periferia, que isso vai vingar. A gente vai ter que exigir que as Lonas Culturais sejam reestruturadas. Tem um público mais curioso, mais aberto, menos encastelado e preguiçoso nesses lugares. Enquanto isso, em São Paulo, está havendo uma efervecência incrível na Praça Roosevelt, com “Os Sátiros” e “Os Parlapatões”, tem peça de meio-dia às três da manhã, é uma diversidade total. E pela quantidade de atores bons que estão vindo da Bahia, de Pernambuco e Curitiba, a gente sente que tá rolando lá, também.
Dizem os homens, que o humor não é muito comum nas mulheres. De onde vem o seu humor?
Os homens dizem isso? Mulher tem muito humor. Tenho muitas amigas engraçadas, e não tenho a menor paciência pra gente que não tem humor. Talvez seja porque o humor é anárquico, politicamente incorreto. O humor é todo errado. Não vem de Apolo, vem de Dionísio. Talvez, durante algum tempo, isso ameaçasse os homens: ver mulheres que tenham essa liberdade com as coisas. Talvez as mulheres tivessem dentro de si, mas não colocassem pra fora. O meu humor vem das mulheres da minha família, que sempre foram hilárias, muito mais do que os homens.
Como é a sua relação com você mesma?
Eu me acho muito ridícula. A minha relação comigo é de humor, e meio Brechtiana. Estou num momento muito sério, e, de repente, me olho de fora e quá quá quá. Talvez tenha sido uma estratégia de sobrevivência. Sou muito cruel comigo, às vezes. Há anos trabalho muito ser tolerante comigo, para ser mais tolerante com os outros. Minha relação comigo não é ótima, porque senão eu seria satisfeita, mas estou caminhando para que seja cada vez melhor. Espero chegar aos 90 anos e dizer: eu te amo fofinha!
Quais são as suas referências na vida?
Helio Eichbauer é meu mestre supremo na vida e na arte. Minha avó Celina Padilha que era incrível, uma mulher que foi jovem nos anos 1920, que era a mesma coisa que ser jovem nos anos 1960 – as pessoas modernas do século XX. Minha mãe. A minha família tem uma coisa Country Club que me fez negar tudo, e buscar uma outra identidade pra mim. Essa coisa Country é meio paralisante, as pessoas são sempre o sobrenome, porque, na verdade, não criaram uma identidade pra elas. Então, são as filhas de fulano, as netas de beltrano. O problema de lá é que as pessoas não sabem rir de si mesmas. Essa referência negativa é muito forte, porque tive que negar muito isso dentro de mim. No teatro, encontrei pessoas que foram jovens nos anos 1960, que me deram cultura: o Ivan de Albuquerque, o Rubens Correa, a Leila Ribeiro. Teve o Zé Celso que conheci muito cedo, e foi muito generoso, a Louise Cardoso, minha professora, as pessoas do Asdrúbal, a Marília Pêra e o Marco Nanini que eu via e queria ser como eles. E o Amir Haddad, a quem ainda peço ajuda até hoje.
Fazer televisão é um sacrifício?
Ir ao Projac é um sacrifício. Hoje em dia, é um processo que, ida e volta, dura quase 5 horas. O trânsito está uma desgraça. Sou a favor do revezamento de placas no Lagoa-Barra, que é o mínimo que se pode fazer para que a Barra exista. A televisão me deu coisas maravilhosas, e tem esse negócio de se comunicar com o pessoal de Roraima, do Acre. Só tenho um pouco de dificuldade de me imaginar numa novela, porque é muito longo, tem um seqüestro da vida. Mas tem muita coisa boa ali, muita gente com quem gosto de trabalhar, e dignifica: dá um lugar de profissional pras pessoas, salário, 13º, plano de saúde. E tem que fazer televisão porque é muito brega ser cult num pais de terceiro mundo.
Qual é o seu plano de trabalho com o Zé Celso?
A gente vai fazer “A senhora dos afogados”, do Nelson Rodrigues.
Você vai deixar ele te desconstruir todinha, Maria?
O jeito que eu sou como atriz não é muito diferente do Zé Celso ou do Amir. Todo mundo tem medo de trabalhar com o Amir e ele não tem a menor desconstrução. O Amir ajudou a me construir. E o Zé Celso é daquelas pessoas que potencializam os outros. Ele acredita que gente é pra brilhar, não pra morrer de fome.
Você se acha uma pessoa difícil?
Não mais nem menos do que a maioria das pessoas que conheço. Se for tentar ficar no intelectual, posso virar uma pessoa difícil, mas se me pegar no afeto, eu amoleço e sou fácil, fácil. Os diretores que trabalham comigo sabem que não me nego a nada. Mas tenho um pensamento sobre o que faço. Vai ter uma hora em que eu vou falar: você não acha que esse jeito é melhor que aquele? A pessoa difícil é aquela que resiste sem tentar.
A inteligência ajuda ou atrapalha a vida de uma mulher?
Atrapalha. No filme “O Grande Gatsby”, a personagem da Daisy Buchanan tem um bebê, e quando ela sabe que é mulher, dá um grito, porque sabe a desgraça. Depois, fala: “Tomara que seja bonita e burra!” Mas gente não tá mais nos anos 1920, melhorou um pouco.
[No meio da conversa a árvore de Natal da Lagoa começou a tocar sua musiquinha de novo e Maria não se agüentou]
Por que não toca logo um Zeca Pagodinho nessa árvore? “Deixa a vida me levar/ Vida leva eu!” Devia acender uns abacaxis, umas melancias, em cima podia ser aquela cabeça da Carmem Miranda. A gente tem que fazer uma campanha por um Natal mais animado! Isso é Brasil, nós tamos suando, aqui!
Quais são as mulheres que você acha interessantes?
Marieta Severo, Andrea Beltrão. O que é Renata Sorrah? Antonia Pellegrino, Manuela Dias, a Nathara Ney [montadora de cinema], que é uma mulher que não tem medo do afeto, a Mirian Muniz que era uma deusa, Alessandra Negrini, Mariana Lima, Malu Galli, Gisele Fróes... Tem tantas, que se eu falar todas vão achar que sou sapata.
Você pode falar sobre a sua irmã Ana e seu pai o Dr. Antar?
Tenho uma vida muito louca com essa coisa de perda. Acho que não tive filhos até hoje porque tinha muito medo de largar o meu filho. Com 9 anos de idade, perdi a minha melhor amiga, atropelada. Com 10 anos, minha mãe se foi. Com 14/15 meus avós se foram, porque já estavam na idade. Uma das pessoas a quem eu era mais ligada na minha família, meu primo, que foi-se com 35 anos. Meu pai viveu bastante, morreu com 89 anos, foi muito feliz em tudo o que fez. Ele desenvolveu um processo de Alzheimer quando a minha irmã Ana, que tinha uma coisa totalmente maternal comigo, ficou doente. O processo da minha irmã foi terrível. Ela nunca fumou, não bebia, e teve câncer fulminante no pulmão. Depois disso mudei muita coisa na minha vida, porque comecei a achar que a gente está vivendo de uma maneira muito errada. Está todo mundo morrendo de câncer! A perda da minha mãe aos 10 anos determinou tanta coisa em mim, que eu meio me preparei para essas coisas. Quer dizer, não é verdade. Quanto mais a gente perde, mais sabe o quanto é ruim perder. Por outro lado, a gente sobrevive. E o ser humano é incrível porque é criativo. Aprendi com terapia e com a filosofia que a gente não supera as dores - elas vão ficar ali, são cicatrizes. Mas pode criar, e, através disso, está transcendendo as dores: sai do lugar da vítima para ser agente da própria vida. E isso não é um privilégio de artistas. A criação de um cotidiano mais incrível, mais interessante, isso é o que a dor da perda tem para ensinar para a gente.
É verdade que você não entra em cena sem fazer uma boquinha?
Falo isso muito com o Amir, porque a gente vive com fome. Ele diz que a gente é ator há muitas encarnações, e ator sempre foi muito pobre. Depois teve Hollywood, TV Globo e a coisa mudou um pouco, mas ator tradicionalmente foi um marginal na sociedade. O Amir acha que a gente tem uma fome atávica, porque passou muita fome. Eu não entro em cena sem comer um sanduichinho antes. Cismo que no meio da peça vai dar fome. Posso estar com vontade de fazer xixi que tudo bem, mas fome me tira do sério. Sabe quem é assim também? A Fernandona [Montenegro]. Já vi ela comer um frango quase inteiro, foi tão bonito! O Zé Celso ensaia 15 horas por dia. Eu falei que vou fazer um bufezinho, porque se ficar sem comer, vou tratar todo mundo muito mal, virar um vudú, vou acabar com o ensaio. Eu tive anorexia. Me obriguei tanto a comer que fiquei gorda uma época. Quando o Beto Brant estava editando “Os Matadores” me ligou, e falou: “Tô montando um plano-seqüência e tem umas celulites na sua barriga”. Eu respondi: “Tudo bem, Beto, imagina!”, porque adorava ser gorda. Mas quando vi o filme achei que tinha perdido a noção do perigo.
Como você se vê velhinha? Você se imagina uma grande dama do teatro?
Deus me livre! Eu quero ser uma vagabunda do teatro!
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